sexta-feira, 10 de setembro de 2010

DISPENSA E INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÕES

Aos que se interessam pelo assunto, segue um pequeno opúsculo acerca de um tema sempre polêmico em matéria de licitações:


DISPENSA E INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÕES


Determina a Constituição Federal em seu art. 5º, caput, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Diferentemente da idéia que pode decorrer de uma interpretação literal do dispositivo, a igualdade acima mencionada deve ser entendida como igualdade em consonância com os critérios albergados por nosso ordenamento jurídico. Portanto, o que são vedadas são as discriminações arbitrárias, absurdas e desarrazoadas, pois o tratamento desigual dos desiguais, na medida de suas desigualdades, é corolário do próprio conceito de Justiça.

O princípio da isonomia, segundo o reconhecimento unânime da doutrina, é um princípio destinado não apenas ao aplicador da lei senão também ao próprio legislador, que ao editar as leis não deve fazer delas fontes de privilégios ou instrumentos de perseguição de determinados indivíduos ou grupos.

Parece não haver consenso na doutrina sobre qual seja a natureza jurídica do princípio da igualdade, Edilson Pereira de Farias, e J.J. Gomes Canotilho entendem se tratar de um princípio fundamental, pois segundo eles, antes mesmo de serem princípios específicos do Direito Constitucional, “são princípios gerais de Direito, com determinação histórica e multifuncionalidade” (apud ROTHENBURG, 2003, p. 67).

Por sua vez, Luis Roberto Barroso entende que o princípio da igualdade deve ser colocado na categoria dos princípios gerais de Direito, pois equivale a um desdobramento menos abstrato dos princípios fundamentais, que este autor entende serem aqueles que contêm as decisões políticas estruturais do Estado.

Não obstante a polêmica quanto seja princípio fundamental ou princípio geral, o que se quer realçar é que o princípio da igualdade é um princípio que se espraia por todo o ordenamento jurídico, notadamente no que tange a sua porção constitucional. Nesse sentido, se o constituinte pretendeu fundar um Estado Democrático de Direito, a igualdade será um valor obrigatoriamente colocado na base desse Estado, sob pena de não ser democrático e muito menos de Direito.

No que pertine e especificamente a Administração Pública, o art. 37, caput da Constituição Federal afirma que a Administração Pública deve se pautar pelos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, e, como já se pode imaginar, quase todos esses princípios são um desdobramento do princípio-mor que é a isonomia.

Pelo princípio da legalidade temos que a Administração só poderá fazer aquilo que a lei determinar, diferentemente dos particulares, para quem esse princípio significa a possibilidade de fazer tudo o que a lei não proíbe. Ora, se a Administração deve se pautar pela lei e esta deve observar a isonomia, então a conduta da Administração terá essa mesma qualidade.

O mesmo ocorre com o princípio da moralidade, segundo o qual a Administração e seus agentes devem se observar os mandamentos éticos, não apenas distinguindo o legal do ilegal, mas o honesto do desonesto. Com efeito, aqui também se percebe o influxo do princípio da igualdade, pois seria notoriamente antiético que um administrador de um bem público usasse-o para benefício próprio ou de seus protegidos.

Contudo, nenhum dos princípios da Administração Pública sofre maior influência do princípio da igualdade do que o princípio da impessoalidade, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello esse princípio

traduz a idéia de que a Administração tem de tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismos nem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoais, políticas ou ideológicas não podem interferir na atuação administrativa e muito menos interesses sectários, de facções ou grupos de qualquer espécie. O princípio em causa não é senão o próprio princípio da igualdade ou isonomia. - Grifamos - (2006:110).

Com efeito, o princípio da igualdade segue rumando à concretude o que se faz por meio de algumas disposições mais concretas, como a que vemos no inciso XXI do próprio art. 37 da CF, assim redigido:

"ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações."

Como qualquer pessoa jurídica a Administração Pública muitas vezes precisa contratar, sendo que muitas dessas contratações empreendidas envolvem valores elevados, que despertam o interesse de muitos pretendentes em com ela (Administração) contratar.

Para atender os postulados principiológicos acima referidos, foi necessário que o legislador criasse um mecanismo que tornasse o ato da escolha o mais impessoal possível, garantindo-se assim a possibilidade qualquer pessoa, atendendo os requisitos objetivos previamente estabelecidos, contratar com a Administração Pública.

Esse mecanismo de escolha é o que se chama de licitação, que nas palavras do mestre Hely Lopes Meirelles pode ser sinteticamente conceituada como “o procedimento administrativo mediante o qual a Administração Pública seleciona a proposta mais vantajosa para o contrato de seu interesse” (2006, p. 271).

A licitação tem duplo objetivo: garantir a eficiência na contratação, ou seja, contratar a melhor proposta pelo menor custo e assegurar aos administrados a possibilidade de contratar com a Administração pública.

A Constituição Federal em seu art. 22, inciso XXVII estabelece como competência privativa da União estabelecer normas gerais sobre licitação, o que ela fez por meio da Lei Federal 8.666/1993, chamada “Lei de Licitações”, que prevê hipóteses em que esta mesma licitação, tão cara ao implemento do princípio da igualdade/impessoalidade, poderá deixar de ser realizada.

De início, cumpre salientar que a lei expressamente divisou os casos em que a licitação pode ou deve deixar de ser realizada, resultando nas seguintes modalidades: licitação dispensável, dispensada ou inexigível.

O art. 24 da Lei de Licitações prevê expressamente as hipóteses em que a licitação é dispensável. Trata-se de um rol taxativo de hipóteses, dos quais podem ser explicitados como exemplos mais significativos:

1) As hipóteses de dispensa nos casos de contratações de obras e serviços de engenharia no valor de até R$15.000,00 (quinze mil reais), desde que a contratação não se refira a parcelas de uma mesma obra ou serviço;

2) As contratações de outros serviços e compras no valor de até R$8.000,00 (oito mil reais), desde que não se refiram a parcelas de um mesmo serviço, compra ou alienação de maior vulto, que possa ser realizada de uma só vez;

3) Os casos de guerra ou grave perturbação da ordem e os casos de emergência ou calamidade pública, dentre outros casos que a lei enumera.

Como se vê, as hipóteses de licitação dispensável são aquelas em que o certame seria viável, mas que o legislador, por razões que vão desde a garantia da segurança nacional até o primado da eficiência administrativa, deixou ao próprio gestor da coisa pública a decisão de promovê-la ou dispensá-la conforme lhe convier.

Os exemplos acima enumerados demonstram bem essa idéia, uma vez que, nos dois primeiros casos, a promoção do certame licitatório provavelmente implicaria num gasto maior do que o próprio valor do serviço contratado; ou ainda, no último caso, o perecimento de vidas em prol da observância de uma formalidade, o que deveras contraria a finalidade do Estado, que nada mais é que promover o bem comum.

Oportuno frisar, a liberação da obrigação de licitar somente será válida se precedida de competente justificativa, isto é, um arrazoado, que partindo de certas premissas presentes nos fatos, chega à conclusão de que o certame não deve ser realizado, lembrando que nesse caso, pela teoria dos motivos determinantes, a validade do ato de dispensa ficará condicionada a verificação da existência dos motivos que ensejaram o ato.

Por sua vez, o art. 17, incisos I e II da Lei de Licitações define as hipóteses em que a licitação é dispensada, isto é, a Administração Pública está excluída do dever de licitar por força de lei. Como ensina Diogenes Gasparini:

Em tais situações, não cabe a Administração Pública qualquer ato, medida ou procedimento para liberar-se da licitação, pois essa lei já determina a sua dispensa. Desse modo, basta que a hipótese legal, a exemplo da alienação de bem imóvel mediante dação em pagamento, aconteça na realidade para que a Administração Pública, proprietária do bem a ser dado em pagamento, esteja liberada da licitação. (2007, p.507).

As hipóteses de licitação dispensada referem-se às alienações de bens da Administração Pública e em que pese estar desobrigada do dever de licitar, deve a alienação justificar-se por razões de interesse público, sendo que os bens a serem alienados deverão ser previamente avaliados.

Ainda, se forem bens imóveis pertencentes a entes da Administração direta, autárquica e fundacional, além da prévia avaliação, deverá haver autorização legislativa.

Por fim, no art. 25 da Lei de Licitações verificam-se as hipóteses em que licitação pode ser inexigível. Segundo o ensinamento de Diogenes Gaparini a inexigibilidade difere da dispensabilidade

[...] já que nesta a licitação é possível, viável, só não se realizando por conveniência administrativa; naquela, é impossível por impedimento de ordem fática, relativo à pessoa que se quer contratar ou com quem se quer contratar. (2007, p.542).



O art. 25 traz um rol não exaustivo, pois outras hipóteses poderão existir nas quais a promoção do certame licitatório será inexigível, falamos daquelas situações onde estejam ausentes pressupostos jurídicos ou fáticos condicionadores dos certames licitatórios, ou porque a licitação significaria inviabilizar o cumprimento do interesse jurídico prestigiado pelo sistema normativo, ou porque os prestadores dos serviços simplesmente não se engajariam na disputa.

A respeito do conceito de inexigibilidade, seus intérpretes dividem-se em duas correntes:

A primeira corrente entende que o art. 25 admite outras hipóteses de inexigibilidade de licitação que ali não estejam previstas, mas que decorrem do fato de ser inviável a competição, todavia, os casos expressamente previstos na lei sempre caracterizariam inexigibilidade, independentemente de no caso concreto ser viável a competição.

A segunda corrente, além de entender que as hipóteses previstas no art. 25 são meramente ilustrativas, elas somente importariam na inexigibilidade de licitação quando esta, no caso concreto fosse verdadeiramente inviável.

Inspetorias e procuradorias que funcionam junto a Tribunais de Contas têm, em sua maioria, perfilhado o segundo entendimento, conforme noticia Jessé Torres Pereira Junior.

As hipóteses de inexigibilidade de licitação referem-se em especial aos casos de:

1) Aquisição de materiais, equipamentos ou gêneros que só possam ser fornecidos por produtor, empresa ou representante comercial exclusivo.

2) Contratação de serviços técnicos de profissionais especializados.

3) Contratação de artistas.

Portanto a distinção entre as hipóteses de licitação dispensável, dispensada ou inexigível se define em função da existência ou não da discricionariedade, conferida pela lei ao administrador público, para decidir em que casos o procedimento licitatório deve ser promovido.

Com efeito, as exceções ao princípio da licitação são pontuais e subsumem-se somente aos casos em que sua promoção contraria valores referentes aos próprios princípios da Administração, ou ainda em por expor a risco bens jurídicos muitos caros ao Estado tais como a segurança nacional e o bem comum das pessoas que vivem em sociedade.

Outras exceções ao dever de licitar poderão ser criadas por meio de lei federal, uma vez que essas exceções são todas normas gerais, são de competência exclusiva da União, conforme previsão expressa do art. 22, XXVII da Constituição Federal, todavia, o legislador, na confecção de novas exceções, deverá sempre observar critérios de pertinência lógica entre a hipótese eleita como exceção e a finalidade a qual esta se propõe, sob pena de inconstitucionalidade por malferir indiretamente o princípio-mor da igualdade guardado no recôndito do dever de licitar.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



GASPARINI, Diogenes. Direito Administrativo. 12. ed. rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 2007.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 31. ed. (atual Eurico Azevedo et al). São Paulo: Malheiros, 2005.

MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 22. ed. rev. atual., São Paulo: Malheiros, 2006.

_____. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. 12. tir., São Paulo: Malheiros, 2004.

PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres. Comentários à lei das licitações e contratações da administração pública. 5. ed. rev. atual. e ampl., de acordo com as EC de nº 06/95 e 19/98, com a LC nº 101/2000, com as Leis de nº 9648/98 e 9854/99, e com MP nº 2108/2001 e seus regulamentos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais. 2. tir. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003.



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